(1904) MAHLER Sinfonia n. 6 "Trágica"

Sechste Sinfonie
Tragische

Compositor: Gustav Mahler
Número de catálogo: MW 6
Data da composição: 1903 e 1904, revisões em 1906
Estréia: 27 de maio de 1906, em Essen - Gustav Mahler na regência de uma orquestra que reunia músicos da Filarmônica de Essen e da Sinfônica de Utrecht

Duração: cerca de 1 hora e 25 minutos
Efetivo: 2 flautas-piccolo, 4 flautas, 4 oboés, 2 cornes-ingleses, 4 clarinetas, 2 clarinetas-baixo, 4 fagotes, 1 contra-fagote, 8 trompas, 6 trompetes, 4 trombones, 1 tuba, 2 conjuntos de tímpanos, bumbo, caixa-clara, pratos, chicote, gongo, baquetas, triângulo, sinos, sinos-de-vaca, chocalho, xilofone, 1 martelo, glockenspiel, 4 harpas, as cordas (primeiros- e segundos-violinos, violas, violoncelos, contra-baixos)

Alma Mahler, a esposa e ela mesma também compositora, ao examinar a partitura, teria perguntado ao marido: — “Mas, afinal, o que você pretende com isso?”. Numa época feliz, de prosperidade material, o casal em harmonia, duas filhas lindas, Mahler ocupando o posto mais cobiçado do mundo na Ópera Imperial em Viena, sendo festejado pelos resultados artísticos e... de sua mente sai esta desesperada Sinfonia.

Nas primeiras apresentações, com regência do próprio autor, a Sinfonia sempre apareceu apenas como Sechste (Sexta), mas uma única vez, em 1907, apareceu no programa da Filarmônica de Viena como Tragische (Trágica). O maestro Bruno Walter, íntimo do compositor e seu discípulo à época, não deixa dúvidas: Mahler se referia à obra como “a minha Trágica”.

À parte a Sexta Sinfonia de Tchaikowsky — um homem torturado que talvez planejasse o suicídio ao escrevê-la —, nenhuma outra obra termina de forma tão sombria, contrariando o caminho esperado de toda Sinfonia, que é culminar num impetuoso acorde vencedor. Esta “Trágica” nos fala da trajetória de um herói que muito luta, mas que no final é abatido. 

São 4 movimentos de estrutura clássica: Allegro - Andante - Scherzo - Allegro. Em algumas versões, o maestro opta por colocar o Scherzo antes do Andante, pois assim Mahler sentiu que seria melhor ao realizar os primeiros ensaios, pedindo uma alteração ao editor, que já havia publicado com a ordem tradicional; então persistem as duas formas. É curioso esse desenho de 4 movimentos num compositor que nesta altura já havia experimentado bastante quanto à forma.

I. Allegro energico: Heftig, aber markig
(Rápido e enérgico: Feroz, mas conciso) — cerca de 22 minutos
Com um início aterrorizante, entram os contra-baixos com uma respiração ofegante. Uma marcha implacável rumo ao inevitável, rumo a uma batalha na qual o herói sente perdida porém não pode dela fugir nem esmorecer. Como quem repassa os episódios da vida, tal herói relembra momentos, temos um tema terno nas cordas — que os estudiosos de Mahler chamam de "o tema de Alma", a eterna musa do autor — e a certeza da batalha eminente corta tais lembranças trazendo a angústia de volta. Os episódios assim se alternam, ora se assemelhando a lembranças de um amor vivido, ora de alegrias e vitórias, com a sofreguidão da luta que nos leva, a todos, ao desfecho final, desfecho este que está sempre tão presente e tão forte na obra de Mahler: a morte. Até que, exatamente no centro do movimento, passados cerca de 11 minutos de música, surge um episódio cheio de mistério e uma gravidade totalmente diversa de todo o material apresentado até aqui: ouvimos sinos de vaca (nesse momento ressoando de fora do palco, vido de longe), dando um caráter pastoral à cena, como quem descreve seu refúgio ideal, mas numa atmosfera cheia de magia, como que deixando claro a substância da qual é feita essa imagem, o sonho. Mas a aflição que domina o movimento (e toda a obra) retorna, deixando-nos clara a intenção do compositor em nos colocar em contato com sua luta inglória.

Lembrando, mais uma vez, que Mahler vivia um dos momentos mais felizes de sua vida...

Como na maioria das performances hoje em dia os maestros optam por colocar o Scherzo antes do movimento lento, aqui obedecerei tal ordem, que seria a definitiva segundo as últimas apresentações organizadas pelo próprio compositor:

II. Scherzo: Wuchtig
(Jogo: Pesado) — cerca de 12 minutos
Como que ecoando a fúria do primeiro movimento, aqui sentimos o sorriso do diabo, o escárnio da vida diante de nossos esforços. Temos que lembrar que sob a ótica do autor, não importa o quanto tentemos, a tragédia sempre se abaterá sobre nós. A selvageria com que certas passagens são expostas certamente atormentaram por demais as primeiras platéias — e esta permaneceu, por muito tempo, como a "mais difícil" das Sinfonias de Mahler — e ainda hoje podem nos chocar, não mais pela sonoridade, uma vez que o século XX (em música e eventos históricos) tratou de nos anestesiar um pouco, mas pela ironia cruel e inexorável com a qual ele nos impõe sua visão. O episódio central, de mascarada doçura e disfarçado lirismo, não é mais que enredo de sedução para que, desprotegidos, sejamos colhidos pelas brutais propostas sonoras que o movimento ainda traz.

III. Andante moderato
(Confortavelmente e moderado) — cerca de 15 minutos
De todos os movimentos lentos de Mahler, este talvez seja o mais tocante, o mais interiorizado. Devemos nos remeter diretamente ao movimento lento da Sinfonia anterior, a Quinta, o célebre Adagietto: uma declaração de amor a Alma, um testemunho de encantamento e imensa esperança. Este guarda de similitude a beleza e a entrega das emoções, mas em lugar da manifestação divina de uma realização por vir, temos aqui um chorar tímido e desolado, um esgar — construído com um lirismo inexcedível — da certeza de que o amor, uma vez consumado, caminha para algum tipo de fim. Os sinos de vaca reaparecem, trazendo aquele ar dos Alpes e da calma dessa paisagem que Mahler tanto gostava, mas eles parecem sacudir as lembranças de lugar feliz com certa inquietude, ao invés de confirmar um cenário de calmaria. Mas, se já sabemos que Mahler vivia, ao compor esta obra, uma fase feliz da vida, o que o leva a propor um cenário tão sem esperanças? A resposta só virá no movimento final, indício de que o autor previu, em música, sua derrocada diante da vida. Há muito, também de canção de ninar, e com isso podemos antecipar um dos golpes que aparecerão no finale e que foram definitivos no entristecimento do espírito do autor na fase final de sua vida, a morte de uma de suas filhas, acontecida depois da estréia desta obra, em 1907.

IV. Finale: Sostenuto — Allegro moderato — Allegro energico
(Final: Sustentado — Rápido moderado — Rápido e enérgico) — cerca de 33 minutos
A imagem que fiz no início da análise, de que o herói está indo em direção a uma luta definitiva, tem aqui seu desfecho. Este movimento é a luta. Mas não figurativa e representada descritivamente; imagine aquele momento no qual, em meio à sangüinária batalha, num átimo, toda a vida passa diante dos olhos. É a luta interna. É a aniquilação de seus sonhos. Mahler vê o que passou, mas pior: antevê o que virá.

Para a execução da obra, as orquestras se vêem obrigadas a produzir um artefacto, um instrumento peculiar: um gigantesco martelo. Seu "golpe do destino" deve soar seco, um baque, um corte inescapável. Mahler planejou-o em três momentos do longo finale, mas após a estréia, temeroso do próprio efeito, pediu a retirada do terceiro, restando apenas os dois primeiros. Alguns maestros, hoje, restituem o golpe fatal, mas o fato é que os tais três golpes se materializaram, um após o outro, no ano seguinte à estréia da obra.

Era premonição: primeiro, a realização profissional; numa campanha anti-semita vergonhosa, ele foi demitido da Ópera de Viena. Depois Maria, sua filhinha mais velha, então com 4 anos, morre de difteria. E em seguida a certeza da própria finitude, ele descobre um mal cardíaco incurável — e que o levaria da vida em pouco tempo. Mahler, ao tentar eliminar o terceiro golpe da partitura, estaria como quem tenta se poupar da própria desgraça. Mas era tarde. Especialmente a morte da filha viria a colocá-lo, por defesa, num processo de afastamento emocional que levaria a mulher a um caso extra-conjugal. Seu castelo estava desmoronando e nada havia a fazer. Não havia mais saída: ele havia entrado em contato com a Tragédia de seu destino.

© RAFAEL FONSECA